O design de interação em ambientes de ubiqüidade computacional

Rejane Spitz
Mauro Pinheiro


Resumo

A partir da caracterização dos sistemas computacionais como ferramentas de interação e comunicação, este artigo propõe ampliar a discussão do design de interação para além da interface, destacando a importância de estudar as práticas sociais advindas da utilização cada vez mais intensa da tecnologia computacional, tendo em perspectiva a ubiqüidade computacional e a mobilidade como fatores determinantes dos processos de comunicação contemporâneos.

Introdução

Na sociedade contemporânea é cada vez maior o número de atividades mediadas por sistemas computadorizados. A tecnologia computacional tem se infiltrado no dia-a-dia de uma parcela da população urbana de tal forma que muitas vezes passa desapercebida, sendo utilizada sem grande esforço em tarefas cotidianas nas grandes cidades. Em algumas capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo e Vitória, os passageiros dos ônibus coletivos urbanos utilizam cartões magnéticos em sensores que controlam as roletas de entrada, identificando o tipo de usuário (estudante, idoso, motorista, cobrador etc), perfazendo cálculos sobre a tarifa da passagem, exibindo o saldo restante acumulado no cartão e liberando ou não a passagem pela roleta. Essa operação, mediada pela tecnologia computacional, muitas vezes sequer é compreendida plenamente pelos passageiros, o que não impede que utilizem o sistema sem maiores complicações. É possível que muitos sequer tomem conhecimento dos cálculos e informações dispostas pelo aparelho, limitando-se a compreender que o cartão libera sua passagem pela roleta.

A miniaturização dos componentes dos sistemas computadorizados, a ampliação do uso de tecnologias de transmissão de dados através de redes sem fio, e o crescimento da Internet, têm colaborado no estabelecimento de um ambiente no qual os computadores fazem parte do cotidiano de tal maneira que passam a compor o cenário das grandes cidades como elementos camuflados, incorporados a diversos outros artefatos. O computador deixa de ser uma entidade tão evidente para diluir-se no ambiente, mediando atividades do dia-a-dia sem demandar esforço cognitivo para sua utilização. No campo da ciência da computação, fala-se em ubiqüidade computacional (Ubiquitous Computing ou ubicomp). O conceito foi introduzido na década de 80 por Mark Weiser, pesquisador do Xerox Palo Alto Research Center (Xerox-Parc). Weiser vislumbrava um futuro no qual tecnologias computacionais fariam parte do “tecido da vida cotidiana”, ressaltando que as tecnologias mais avançadas seriam aquelas que desaparecessem no pano de fundo do nosso entorno (Weiser, 1991). A presença da tecnologia computacional poderia ser comparada no futuro com a presença da escrita (considerada uma “tecnologia de informação”) e da eletricidade no cotidiano dos grandes centros urbanos. Ambos seriam exemplos de ubiqüidade, de presença constante em diversas instâncias da vida contemporânea, sem demandar maior esforço cognitivo para sua utilização [1]; tecnologias que “desaparecem” no ambiente, sendo mais percebidas quando estão ausentes da cena do que pela sua presença constante.

Embora ainda não tenhamos chegado a tal estágio de absorção da tecnologia computacional, percebe-se que os suportes para sua utilização têm variado ao longo do tempo, implicando não só uma redução de volume, mas novas formas de utilização. Dos computadores de grande porte dos anos 70 (mainframes), geralmente utilizados e compartilhados por um grupo de especialistas, passamos aos computadores pessoais na década de 80, cuja utilização em geral era restrita a uma pessoa por computador. No final do século XX, o uso massivo da Internet e dos computadores em rede pode ser entendido como a formação de um grande computador coletivo (Lévy, 1996; Neves, 2004), multitarefa, compartilhado simultaneamente por diversas pessoas, de forma descentralizada. O futuro parece apontar para um cenário no qual fica difícil perceber os limites de apropriação e utilização das tecnologias computacionais, uma vez que estas se fundem ao ambiente. Os computadores fazem parte da paisagem; temos então o que costuma se chamar de pervasive computing [2].

Essa difusão das tecnologias computacionais ocorre simultaneamente a uma crescente utilização dos sistemas de acesso à informação. A Internet talvez seja um dos grandes marcos da passagem da era industrial para a era da informação, sendo um dos temas que têm demandado atenção neste início de século. Não nos referimos especificamente à estrutura de redes de computadores conectados remotamente, mas às práticas de acesso à informação que vieram a reboque da popularização dessa tecnologia. Nos países desenvolvidos e nas camadas economicamente favorecidas dos países em desenvolvimento, uma geração de jovens cresce em um ambiente no qual a grande rede é parte corriqueira de suas atividades. Estar “conectado”, imerso no mar de informações, ligando-se a sistemas e pessoas através de interfaces computacionais é uma experiência cada vez mais fluida, que começa a distanciar-se da imagem de uma pessoa sentada à frente de um terminal de computador.

A mobilidade parece ser a palavra-chave nessa etapa do desenvolvimento dos sistemas computacionais, e principalmente, a característica que vem alterar a maneira como as pessoas utilizam essa tecnologia, e em igual medida, o que pode afetar as relações interpessoais, conforme destaca Beiguelman:

A popularização dos dispositivos portáteis de comunicação sem-fio com possibilidade de conexão à Internet e a implantação de hotspots que permitem acesso à rede via ondas de rádio (Wi-Fi, wireless fidelity) apontam para a incorporação de vida nômade e indicam que o corpo humano se transforma, rapidamente, em um conjunto de extensões ligadas a um mundo cíbrido, pautado pela interconexão de redes e sistemas on e off line. (Beiguelman, 2006)

Lemos (2006) descreve a sociedade contemporânea, tendo o fenômeno da mobilidade e de utilização de sistemas computadorizados móveis em perspectiva, como inscrita em processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.[3] Segundo o autor, a vida social organiza-se pela instauração de “territórios”, mas sua dinâmica só existe de fato se houver a possibilidade de “linhas de fuga” que permitam desterritorializações. Na cultura contemporânea as tecnologias computacionais móveis estariam instituindo processos nômades, alterando relações de espaço e tempo, promovendo simultaneamente novos territórios e perda de fronteiras.

De fato, com a utilização crescente de sistemas computadorizados no cotidiano, em situações cada vez menos dependentes do uso de computadores do tipo desktop e sim mediadas por aparelhos que permitem a mobilidade, a possibilidade de acessar, de ser “acessado”, de emitir informações a qualquer tempo e lugar a partir de diversos dispositivos, diluem-se os limites de nossos territórios. Em meio a uma reunião de negócios, o executivo atende o celular e conversa com seus familiares, sem se preocupar com a intimidade de suas palavras frente a uma audiência desconhecida; durante o almoço com a família, o profissional autônomo atende seu telefone e resolve problemas com o seu trabalho mais recente. Os home-offices fundem o espaço doméstico com o ambiente de trabalho, fazendo com que o “horário comercial” deixe de fazer sentido. As grandes corporações mantêm blogs no ciberespaço, nos quais questões internas são discutidas publicamente (Guimarães, 2006). O email, antes privado, passa a ser público nos scrapbooks do site de relacionamentos Orkut, nos quais mensagens íntimas são deixadas para serem lidas por qualquer pessoa. Tempo e espaço tornam-se fluidos, relações hierárquicas deixam de fazer sentido, confunde-se o público e o privado, o lazer e o trabalho, produtores e consumidores, marginal e mainstream. (Bauman, 2001; Sá, 2004 apud Paraguai & Tramontano, 2006; Meyrowitz, 2004).

Nesse contexto com limites imprecisos, há muita discussão sobre os reais benefícios de conexão constante, de possibilidade de acesso a quantidades maciças de informação, de relacionamentos e interações mediadas pelos meios computacionais a qualquer tempo, em qualquer lugar, como destaca Meyrowitz:

[…] a possibilidade técnica de conectar-se eletronicamente a qualquer lugar como se fosse um espaço local pode aumentar o perigo de se perder a habilidade de uma visão ampla, de ver o contexto histórico e geográfico, de perceber os padrões gerais. Ironicamente, o aumento do potencial de acessar, justapor, comparar, contrastar, e construir narrativas alternativas é freqüentemente acompanhado da redução da inclinação psicológica de se envolver em uma análise que consome tanto tempo. Paradoxalmente, quanto mais as novas tecnologias ampliam nossa capacidade de realizar coisas em instantes, parecemos estar cada vez com menos tempo. (Meyrowitz, 2004, p. 29, grifo do autor, tradução nossa.)

O cenário que se descortina a nossa frente é pouco claro, mas algumas questões merecem atenção. Parece clara a tendência de se ampliarem as possibilidades de conexão, a qualquer tempo, em qualquer situação. Novas formas de transmissão de dados, como as etiquetas RFIDs (radio frequency identifcation tags) [4] sugerem que em breve objetos passivos como roupas e livros, transmitirão informações sobre sua natureza, estado, localização, tornando cada vez mais próximo o cenário de pervasive computing, a despeito da incerteza quanto às reais implicações de se viver em um mundo no qual as informações e interações mediadas por sistemas computacionais ocorrem em situações diversas, reconfigurando os limites das práticas sociais. É imperativo acompanhar o desenvolvimento dessas novas tecnologias com atenção, procurando entender como se dá a sua apropriação, territorialização, e as “linhas de fuga”, as desterritorializações, criadas pelos grupos sociais que participam dessa cibercultura da mobilidade, de maneira que possamos orientar novos projetos que visem o bem comum. Nesse sentido, corroboramos a visão de Meyrowitz sobre o assunto:

Ao vagarmos pela savana digital, precisamos alcançar mais do que as pepitas mais visíveis de informação. Precisamos orientar o uso de nossas tecnologias para que seu potencial democratizante seja alcançado. (Meyrowitz, 2004, p.29, tradução nossa.)

Design de interação: um olhar para além da interface

Gui Bonsiepe (1997) define o domínio do design através de um diagrama ontológico que relaciona três campos heterogêneos:

O relacionamento destes três campos se daria pela interface, “o espaço no qual se estrutura a interação entre corpo, ferramenta (objeto ou signo) e o objetivo da ação” (Bonsiepe, 1997, p.12). Na interface estaria o domínio central do design.

Para uma prática de design consistente, é necessária a compreensão deste domínio em toda a sua extensão. Não cabe simplesmente pensar o artefato sem considerar o seu contexto de uso, assim como não cabe analisar simplesmente a ação a ser realizada. A “análise da tarefa” é uma parte necessária, mas parece não dar conta da compreensão do universo no qual o design deve atuar. A abordagem deve ser holística, demandando a compreensão do contexto de uso, dos agentes sociais envolvidos, das características do artefato a ser desenhado. Nesse sentido, práticas sociais, significados atribuídos, aspectos subjetivos, têm tanta importância quanto aspectos pragmáticos, questões funcionais, tecnológicas e produtivas. As práticas sociais levam a utilizações dos objetos que envolvem tanto questões funcionais, técnicas, objetivas quanto emocionais, subjetivas.

Quando pensamos nos sistemas computacionais ubíqüos como meios de comunicação, é necessário pensar em como se dão leitura e escrita nesse meio, a gramática necessária para que os usuários utilizem este recurso para dialogarem entre si. Sá acredita que a gramática de um meio depende de quatro variáveis, a saber:

[…] dos aspectos cognitivos e práticas sociais dos usuários; das linguagens do meio, tecnologias envolvidas e formas de estocagem da informação; dos aspectos políticos-institucionais envolvidos na produção-circulação-recepção da informação através do meio; e do contexto macro-econômico onde se insere o meio. (Sá, 2004, apud Paraguai & Tramontano, 2006, p.2).

Meyrowitz (2001) destaca a necessidade de uma abordagem para além do veículo em si ao comparar distintas visões do que seria uma “alfabetização midiática”. Mais do que uma análise do conteúdo veiculado, e sem se limitar à compreensão da gramática específica utilizada na configuração formal das mensagens em diversos meios (ex. escolhas tipográficas, composição da página nos meios impressos), o autor propõe uma análise mais abrangente:

Ao nível macro a alfabetização midiática envolve a compreensão ampla de como um novo meio pode levar a amplas mudanças sociais. Por exemplo, a teoria do meio ao nível macro explora questões tais como a alteração que pode ocorrer na natureza e no tipo das situações sociais, nas relações entre pessoas, e o fortalecimento ou enfraquecimento das várias situações sociais em decorrência da adição de um novo meio à matriz dos veículos existentes. (Meyrowitz, 2001, p.96)

Destaca-se mais uma vez a necessidade de compreensão das práticas sociais dos usuários. Mais do que a compreensão das características técnicas e da gramática própria dos dispositivos, é necessária uma abordagem que dê conta de compreender o fenômeno em sua plenitude, de modo que se possa contribuir na configuração desses sistemas.

Desde a ampliação do uso dos computadores a partir da década de 80, os designers envolvidos com o projeto de interfaces para estes sistemas têm focado essencialmente no projeto das GUI (graphic user interface). É notável o crescimento das pesquisas no campo do design no que se refere à interação homem-computador (HCI, human computer interaction), campo que no Brasil tem relação estreita com a ergonomia. Os estudos nessa área têm desenvolvido diversas técnicas para análise da eficiência dos sistemas computadorizados, com diferentes métodos de inspeção, testes de usabilidade, análises heurísticas e uma série de outras ferramentas, que em geral parecem focar na relação do usuário com um determinado sistema, ou ainda com partes e elementos específicos dos sistemas. No entanto o conceito de “eficiência” em um contexto tão complexo parece questionável, principalmente pelo fato de que no campo do design pouco tem se discutido sobre as práticas sociais que perpassam a utilização destes dispositivos, cada vez mais fluidas e difusas na tessitura dos acontecimentos cotidianos.

É curioso perceber que os estudos de HCI têm se debruçado sobre questões específicas de sistemas que podem mudar radicalmente em pouco tempo. A evolução da tecnologia aponta para um ambiente de interação diverso do atual, no qual as máquinas deixam de concentrar funções, espalhando-se e tornando-se parte do ambiente, sem demandar demasiado esforço cognitivo, pulverizadas e integradas a outros objetos, que trafegam informações, emitem sinais e comunicam-se uns com os outros, A despeito da necessidade de se pensar alternativas para facilitar a utilização dos sistemas computadorizados da atualidade, percebe-se que muitos dos problemas de usabilidade e HCI encontrados parecem decorrer de uma sobrecarga de informação e concentração de funções em um único dispositivo, o que dificulta a própria compreensão de todas as possibilidades que a ferramenta encerra.

No ponto atual da evolução dos meios computacionais e das práticas associadas a esses meios, somos cada vez mais bombardeados por produtos que concentram uma infinidade de funções e demandam imersão e foco central da atenção do usuário para sua utilização. Um dos exemplos mais interessantes é o telefone celular, o representante notório dos mobile systems. Este aparelho experimenta um crescimento de uso sem comparação no mundo todo, mesmo em países nos quais o acesso às tecnologias se dá com certo atraso, como o Brasil. Os telefones celulares provavelmente são o “computador” ao qual a população brasileira mais tem acesso, sem comparação possível com os computadores tipo desktop, que ainda não têm um alcance tão grande quanto os pequenos aparelhos móveis. Os celulares deixaram de ser somente telefones, concentrando diversas funções, tais como agenda de compromissos, caderno de endereços, relógio, despertador, calculadora, plataforma de jogos, envio de mensagens de texto (via SMS), portal de acesso à internet (via WAP) com possibilidade de acesso a email e navegação em sites formatados especialmente para este veículo.

Bruce Sterling (2004) classifica esse tipo de aparelhos, que longe de se integrarem à paisagem demandam atenção e expertise para manipulação das inúmeras funções que contém, como gizmos, uma nova classe de objeto, numa linha evolutiva que relaciona os artefatos de nossa cultura material com a sociedade que deles derivam:

[…] artefatos são feitos e utilizados por coletores-caçadores e fazendeiros em sistemas de subsistência; máquinas são feitas e usadas por clientes, em uma sociedade industrial; produtos são feitos e usados por consumidores, em um complexo militar-industrial; gizmos são feitos e usados por usuários-finais, no que quer que seja hoje – uma “Nova Desordem Mundial”, um “Complexo Terrorismo-Entretenimento” . (Sterling, 2004, tradução nossa)

Não cabe aqui uma análise detida na categorização simplista esboçada pelo autor. Interessa a nova classe de artefato sugerida por ele; mais adiante, o autor destaca o excesso de funcionalidades embutidas nos aparatos típicos do nosso tempo:

Um Gizmo, ao contrário de uma Máquina ou um Produto, não é eficiente. Um Gizmo tem diversas funcionalidades bizarras, barrocas e mesmo loucas. Este aparelho Treo que estou carregando é um Gizmo clássico: é um telefone celular, um web browser, uma plataforma SMS [5], uma plataforma MMS [6], uma péssima câmera fotográfica, uma máquina de escrever abissal, mais um bloco de notas, um caderno de rascunhos, um calendário, um diário, um relógio, um aparelho de som, e um sistema com o seu próprio tutorial que ninguém lê. Além disso, eu posso conectar novos acessórios mais complicados ainda, se eu souber como. Não é uma Máquina ou um Produto, porque não é algo isolado, finalizado. É uma plataforma, um parque de diversões para outros desenvolvedores. (Sterling, 2004, tradução nossa)

Esses aparatos, gizmos, apetrechos ou o que quer que sejam, estão longe de serem utilizados facilmente por qualquer pessoa. O mais provável é que as novas gerações, adolescentes e crianças mais familiarizadas com essas tecnologias e com interesse constante por novidades, sejam aqueles que utilizam a maior parte das funcionalidades dos sistemas computadorizados que seguem essa lógica. Sterling destaca uma característica interessante de nosso tempo, o fato de termos projetos em construção, e não produtos finalizados. Novas versões dos aparelhos chegam a cada instante, tornando o que era a “última geração” de ontem na tecnologia ultrapassada de amanhã. No futuro os objetos serão a expressão física e material de um projeto em andamento, meras atualizações de sistemas de informação virtuais em constante evolução.

Weiser e Brown (1996) acreditam que a próxima geração de tecnologia computacional deveria ser abordada numa perspectiva que chamam calm technology. A questão central para os autores é que a utilização dos aparatos tecnológicos deveria permanecer em segundo plano, na periferia de nosso campo de atenção de maneira a demandar pouco esforço cognitivo para serem utilizados, sem que isso elimine a possibilidade de trazer esses aparatos para o centro de nossa percepção; essa possibilidade de deslocamento do foco de nossa atenção é o ponto principal de diferenciação entre a calm technology e outras tecnologias. Os sistemas computacionais, inseridos e absorvidos pelos objetos do cotidiano, seriam constantemente manipulados sem que necessitássemos maior concentração, o que permitiria deslocar nosso foco de atenção para outras atividades, estando em constante relação com a tecnologia sem necessariamente sermos absorvidos por ela. Um panorama muito diverso dos atuais sistemas computacionais, que demandam toda nossa atenção para sua manipulação, o que contribui para gerar situações de stress, lesões por esforço repetitivo e fadiga em casos de utilização de computadores por períodos prolongados (Victor, 2006).

É necessário perguntar qual o papel do design em tal conjuntura. Em um ambiente de pervasive computing, de mobilidade e práticas de acesso à informação constante, de interações mediadas por sistemas computacionais, sistemas que deixam de demandar atenção e passam a fazer parte da paisagem, do pano de fundo das atividades cotidianas, qual o papel do design?

Lev Manovich (2006) acredita que os designers têm trabalhado no desenvolvimento de interfaces computacionais sem promoverem uma integração consistente entre hardware e software, como se as máquinas e suas interfaces digitais fossem partes separadas, destacando a distância formal que existe entre a configuração física das máquinas e a estética das interfaces gráficas. Ele propõe uma fusão entre máquina (interface física) e suas interfaces virtuais, um projeto único de hardware e software integrados. No entanto sua abordagem parece não dar conta de que em um ambiente de pervasive computing o foco do projeto deve ampliar-se para além da interface e para além da máquina. É possível supor que em um ambiente no qual os computadores estejam integrados e “camuflados” na paisagem urbana, o acesso, a manipulação de informações e as interações interpessoais mediadas por sistemas computacionais ubíqüos, se dará de alguma forma por interfaces que podem trabalhar todos os sentidos (visão, audição, tato etc.), multimodal user interfaces que se adequam ao contexto (Landay, 1999). A despeito da suposta existência dessas interfaces, e portanto da necessidade de projetá-las, é preciso pensar as práticas sociais que estão em jogo, uma vez que o domínio do design é um complexo que envolve a compreensão do usuário, do contexto de uso. Não basta pensar em design de interface, mas sobretudo pensar em design de interação, conforme propõem Paraguai e Tramontano:

A disciplina design da interação nos parece, então, um aporte teórico apropriado neste momento, uma vez que não apenas concentra-se nos dispositivos – o hardware, a materialidade e a forma, mas pretende abarcar o contexto das relações humanas e espaciais decorrentes da hibridização de tecnologias e usos. (Paraguai & Tramontano, 2006, p. 8, grifo dos autores)

A evolução destes meios, indica uma intenção de potencializar os processos de comunicação; mediados por uma tecnologia computacional que caminha para uma translucidez [7], numa perspectiva de calm technology, os “interagentes” (Lemos, 2004) dialogam através de ferramentas que não demandam esforço cognitivo excessivo, fazendo com que a comunicação em si fique em evidência. Paradoxalmente, a despeito da translucidez possível de novos meios de comunicação, é da natureza humana resignificar, criar usos imprevistos para os sistemas, traçando linhas de fuga, elaborando novos códigos, novos signos e linguagens. É na interação destes agentes da cibercultura, na maneira como resignificam os processos comunicacionais, que parece residir a chave para o desenvolvimento dos sistemas futuros.

Assim, reitera-se a necessidade de ampliar o foco de atenção dos designers que atuam no campo do design de interface; trata-se de pensar o design de interação, em um ambiente complexo, no qual a mobilidade, a ubiqüidade, o compartilhamento de informações através de diferentes dispositivos dispersos na malha do ambiente urbano, podem instaurar novas formas de relacionamento. A compreensão desse cenário vai além dos estudos de HCI, o que demanda uma abordagem ampla da questão. Um mapeamento das características fundantes do cenário que se anuncia torna-se necessário, relacionando questões objetivas do desenvolvimento tecnológico destes dispositivos e questões subjetivas implícitas nas novas práticas e formas de comunicação em curso.

A título de conclusão…

As práticas sociais contemporâneas, permeadas por sistemas computacionais que permitem a veiculação e o acesso a informações em diferentes dispositivos, têm colaborado para a criação de novas formas de relacionamento interpessoal. Diversas ferramentas de publicação circulam na Internet (blogs, fotologs, videologs etc), fazendo com que cada vez mais pessoas disponham informações de sua vida privada na grande rede, muitas vezes com acesso irrestrito. As tecnologias de comunicação atuais permitem a localização de indivíduos a qualquer tempo, em qualquer lugar. São diversas formas de transmissão e recepção de informações que colaboram para atenuar os limites entre os espaços e momentos de comunicação e de fruição dessa massa de informações. Vivenciamos processos de desterritorialização, que engendram novas formas de relacionamento interpessoal.

Há muita controvérsia sobre os reais benefícios desse tipo de ambiente de conexão constante. Uma visão mais pessimista pode levar a crer que novas formas de controle e regulamentação irão surgir; o indivíduo online, em movimento, emitindo dados constantemente, estaria sujeito a mecanismos de monitoramento, constituindo um cenário semelhante ao imaginado por George Orwell. Segundo esta vertente, o Big Brother estaria cada vez mais próximo. Mesmo hoje, em diversos sites de compras na Internet, existem mecanismos de mapeamento da navegação dos usuários que permitem prever comportamentos, gostos, interesses. Uma pessoa que use constantemente sites de compra e de relacionamento online, possivelmente já enviou informações suficientes para um conhecimento bem aproximado de seus interesses; através de sites de álbuns de fotos e de relacionamento como Orkut e Flickr, é possível perscrutar boa parte de sua vida privada, sua rede de relacionamentos. A evolução deste quadro de falta de privacidade e de monitoramento no cenário de pervasive computing é uma preocupação constante nos fóruns especializados no assunto. Mesmo os entusiastas da ubiqüidade computacional destacam que é necessário garantir o direito à privacidade e sigilo de dados em ambientes com mediação e interação constante, embora não necessariamente apontem caminhos para que isso ocorra. (Landay, 2006)

Em que pesem as questões de privacidade e segurança, parece claro que a ubiqüidade computacional é um fenômeno em processo; a comunicação mediada por sistemas computacionais caminha para a mobilidade e pervasividade. Seria ingênuo acreditar que estas transformações afetarão os diversos grupos sociais que compõem nossa cultura da mesma maneira. Mesmo em um cenário no qual os computadores encontram-se camuflados na paisagem, existem diferentes maneiras de participar desse ambiente, sendo os níveis de imersão e participação influenciados por variáveis tais como familiaridade com sistemas computadorizados, idade, escolaridade etc.

Se pretendemos entender como se dá a apropriação dessa tecnologia, assim como os processos de territorialização e desterritorialização, as “linhas de fuga” criadas pelos grupos sociais que participam da cibercultura, devemos atentar para as práticas correntes nesse contexto de mobilidade e interconexão constante. Embora estejamos ainda numa fase inicial de pervasividade computacional, é possível perceber práticas sociais em curso que apresentam questões importantes para compreender esses processos, e principalmente orientar nossa prática para o desenvolvimento de projetos que visem o bem comum.

O design, como atividade que atua na criação de interfaces que possibilitam a comunicação entre diferentes interagentes, deve compreender as práticas sociais advindas das desterritorializações em curso, para desenvolver soluções adequadas às formas de comunicação contemporâneas. A despeito da importância dos estudos de usabilidade e de projeto de interface, para o desenvolvimento de projetos no campo do design de interação torna-se necessária uma abordagem que privilegie a observação e entendimento do fenômeno como um todo, ampliando o foco da interface, do artefato, para os sujeitos e as práticas sociais que estes elaboram no contexto de interação mediada por dispositivos móveis de comunicação.

Referências

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Notas

[1] Ressalte-se que a apropriação da escrita como algo que dispensaria esforço cognitivo não diz respeito à interpretação e compreensão de textos, e sim ao ato de leitura em si, de informações que estariam dispostas em diferentes suportes nos grandes centros urbanos, não se restringindo a jornais e revistas, mas abrangendo a sinalização urbana, embalagens, letreiros de ônibus etc.

[2] O termo “pervasive computing” tem sido utilizado para designar o contexto no qual as tecnologias de informação e comunicação (TICs) combinam-se com objetos diversos (como celulares, pagers, palmtops, relógios, carros, espaços arquitetônicos) para compor novos dispositivos de mediação. (ver Paraguai e Tramontano, 2006)

[3] A noção de território aqui não se restringe à delimitação de um espaço físico, mas à significação de demarcações de limites diversos (políticos, econômicos, simbólicos, subjetivos).

[4] RFIDs são sistemas que permitem a transmissão de informações remotamente, geralmente utilizados em etiquetas para identificação e localização de objetos. Já existem aplicações diversas, desde passes-livres para veículos em pedágios, até implantes em humanos.

[5] SMS: acrônimo de Short Message System, sistema de mensagens curtas. Refere-se ao sistema que permite o envio de mensagens textuais através dos telefones celulares.

[6] MMS: acrônimo de Multimedia Message System, sistema de mensagens multimídia. Refere-se ao sistema que permite o envio de mensagens conjugando texto, som e imagem através dos telefones celulares.

[7] Adotamos a noção de “translucidez” para o futuro das tecnologias computacionais em contraposição às noções de “transparência” e “reflexo”, implícitas nas associações das interfaces computacionais com “janelas” e “espelhos” de Bolter e Gomala (2003). A partir da noção de calm technology de Weiser e Brown, (1996), parece-nos mais correta a idéia de uma “translucidez”, que permite enxergar através, mas ainda é percebida conscientemente.

Referência para este artigo:

PINHEIRO, Mauro; SPITZ, Rejane. O design de interação em ambientes de ubiqüidade computacional. In: Congresso Internacional de Design da Informação, 3., 2007, Curitiba; Anais…CD-ROM. Curitiba, 2007.

1 de outubro de 2007